quarta-feira, 12 de maio de 2010

AINDA CASA GRANDE E SENZALA

AINDA CASA GRANDE E SENZALA
 
O que é preciso para tornar um ser humano escravo?
Tome uma criança, uma vida sem rumo ou uma alma ingênua. Mantenha-a na ignorância do mundo. Crie regras rígidas, punidas com violência física ou psicológica. Destrua qualquer vestígio de dignidade ou autonomia mental, incentive a promiscuidade, rompa vínculos familiares ou transforme-os em mecanismo de controle: numa ameaça!
Dê-lhe apenas o necessário para matar a fome e a sede, e, mesmo assim, só quando estas já forem tantas, que seu ato seja considerado como uma demonstração de generosidade. Ela já estará acreditando que sua vida depende de você.
Acostume-se a estender a mão para ser beijada. Exija que baixem os olhos diante de sua presença. Escolha um desses submissos - de preferência o de pior índole - para ser seu capataz. Dê-lhe alguma regalia e ascendência, e o torne o instrumento físico de sua crueldade e falta de humanismo. Mande-o bater! Deixe que bata! Depois, surja como um bálsamo!
Manipule os cordéis, mas mantenha-se à distância.
Use a religiosidade a seu favor. Deixe acreditarem que existe uma vida melhor e que o sofrimento é o caminho para ela... Mas não nessa existência! Doutrine para que creiam haver os que nascem para mandar e outros para obedecer, e que isso é natural e imutável, desde a origem dos tempos.
Eduque seus filhos para serem piores que você, encarando a escravidão como parte de sua herança. Encha-os de preconceitos e mimos. Faça com que eles acreditem que existem seres inferiores aos seus cães e cavalos de raça, e que as filhas da escravidão também são escravas de seu prazer, sem culpa nem compaixão. Acoberte seus excessos.
Compre o respeito e o silêncio das elites. Lave as mãos com viagens e festas. Cultive a vaidade, para si, e a insensibilidade, para com o semelhante. Construa templos para expiar seus pecados. Glorifique Deus, com palavras, mas sirva às trevas, com seus pensamentos e atos. Acredite que o sangue de Cristo o libertará, mesmo vivendo imerso no sangue de inocentes. Creia fazer jus a vida eterna, apesar de limitar a vida de seres humanos. Sonhe com um túmulo majestoso, esquecendo as centenas de covas rasas, em local desconhecido, pelas quais deve ter sido responsável.
Pensaram que isso havia acabado em 13 de maio de 1888, mas não! Isso nunca acabará enquanto existirem bestas humanas, nos campos e nas cidades, que insistam em tratar outros seres humanos, de todas as raças: patrícios ou imigrantes ilegais, como animais de um rebanho pessoal.
Enquanto houver senhores feudais, no campo; empresários sem escrúpulos, nas cidades; cafetões, em qualquer lugar, e a sociedade tolerando-os e cortejando-os, a escravidão continuará sendo uma sombra, uma vergonha, um absurdo e um imperdoável crime contra a Humanidade!
São vidas de pessoas que estão sendo desviadas, consumidas e destruídas! São condenações, sumárias e sem juízo, por toda a vida!
Como qualificar e punir quem pratica ou justifica a escravidão em pleno Século XXI? Com a milenar Lei de Talião?
Não! Isso seria justificá-los, transformando-os em vítimas e rebaixando-nos a um nível ainda pior. A Humanidade evolui quando supera essas práticas!
Que tal condená-los a viver de um trabalho honesto, tendo apenas o que merecerem? Quem sabe...
Enquanto isso, que Deus tenha piedade de seus atos e de nossas omissões.
 

quinta-feira, 6 de maio de 2010

Sereias e Medusas

As sereias eram o terror dos mares da Antiguidade. Seu canto inebriante levava os navegantes à loucura ou à morte. Já os olhos de Medusa transformavam todos quantos os fitassem em estátuas de pedra, figuras sem liberdade ou vontade.

O fascínio é assim: tolhe o discernimento e faz perder o rumo. Seu poder é quase insuperável, a não ser com muita astúcia e inteligência: faculdades humanas, disponíveis para quem as quiser desenvolver e exercer.
O fascínio pode ser uma manifestação espontânea, mas também pode ser o produto de um ato deliberado de manipulação externa do inconsciente. Assim como o fanatismo, não deixa ver nada além do objeto de sua fixação: ídolo, ideal, etc.; inibe a consciência da realidade; limita a visão do próximo e do todo, e pode levar a destruição individual e coletiva.
O canto de sereia distrai e não deixa ver os rochedos que se avizinham.  Além disso, dependendo da melodia que se ouve, fechar os olhos para melhor senti-la pode significar perder a capacidade de ouvir outros sons, inclusive alertas de perigo ou apelos à racionalidade.

Virar pedra transfere para outros a escolha do que será construído. Às vezes, podem ser rochedos. E quando o ser humano aceita virar pedra, também concorda que sua mobilidade estará nas mãos de terceiros, que o colocarão onde bem ou mal quiserem, para ser: a base do caminho onde pisarão; obstáculo aos outros; objeto a ser atirado; ou mais um elemento inerte na muralha de ignorância que protege seus interesses obscuros.
Para não cair nessas armadilhas, nos dias atuais, também é preciso ter muita astúcia e inteligência - assim como tiveram Perseu e Ulisses - para não se deixar iludir com as aparências do marketing e da propaganda, que podem ser usados maliciosamente, para nos transformar em pedras ou nos afogar no mar da vaidade, do oportunismo, da ganância ou do fanatismo. Como esses personagens da mitologia grega, é preciso desafiar os deuses que querem exercer sua divindade nefasta do alto das torres que constroem com as pedras em que transformam os seres humanos, que aceitam a condição de escravos de seus cantos de sereias e olhares de Medusa. Mas, também é preciso combater nossos maus instintos, que a sedução oportunista faz aflorarem, e a tendência à passividade e à alienação, que é solo fértil para os posseiros e grileiros de mentes e almas.

Para tanto é imprescindível não se iludir com discursos; não se distrair com presentes; não se deixar seduzir com promessas; não assinar cartas de escravidão voluntária; não integrar rebanhos destinados ao abate; não aceitar ser usado como agregado inerte na argamassa de manobra que concretiza as más intenções coletivas de interesses individuais, oportunistas, egoístas, parasitários e deletérios.
É preciso ser plenamente humano, com todas as vantagens e responsabilidades que essa condição importa, individual e coletivamente.
Fascínio e encantamento? Só com a humanidade, com a natureza e com a vida, que é um dom gratuito de Deus: pessoal e intransferível!

Adilson Luiz Gonçalves
Mestre em Educação
Escritor, Engenheiro, Professor Universitário e Compositor
Ouça textos do autor em: www.carosouvintes.org.br (Rádio Ativa)